Deus quer, o homem sonha, a obra nasce Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!
O Poeta relata a chegada a Calecut, agradecendo Vasco da Gama a Deus.
92
Já a manhã clara dava nos outeiros Por onde o Ganges murmurando soa, Quando da celsa gávea os marinheiros Enxergaram terra alta pela proa. Já fora de tormenta, e dos primeiros Mares, o temor vão do peito voa. Disse alegre o piloto Melindano: "Terra é de Calecu, se não me engano.
93
"Esta é por certo a terra que buscais Da verdadeira Índia, que aparece; E se do mundo mais não desejais, Vosso trabalho longo aqui fenece." Sofrer aqui não pode o Gama mais, De ledo em ver que a terra se conhece: Os geolhos no chão, as mãos ao céu, A mercê grande a Deus agradeceu.
94
As graças a Deus dava, e razão tinha, Que não somente a terra lhe mostrava, Que com tanto temor buscando vinha, Por quem tanto trabalho experimentava; Mas via-se livrado tão asinha Da morte, que no mar lhe aparelhava O vento duro, fervido e medonho, Como quem despertou de horrendo sonho.
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa, in Mensagem
O Poeta narra uma tempestade. O Gama reza a Deus para que salve a armada, mas quem intervém é Vénus e as suas ninfas que acalmam os ventos.
70
Mas, neste passo, assim prontos estando Eis o mestre, que olhando os ares anda, O apito toca; acordam despertando Os marinheiros duma e doutra banda; E porque o vento vinha refrescando, Os traquetes das gáveas tomar manda: "Alerta, disse, estai, que o vento cresce Daquela nuvem negra que aparece."
71
Não eram os traquetes bem tomados, Quando dá a grande e súbita procela: "Amaina, disse o mestre a grandes brados, Amaina, disse, amaina a grande vela!" Não esperam os ventos indinados Que amainassem; mas juntos dando nela, Em pedaços a fazem, com um ruído Que o mundo pareceu ser destruído.
72
O céu fere com gritos nisto a gente, Com súbito temor e desacordo, Que, no romper da vela, a nau pendente Toma grã suma d'água pelo bordo: "Alija, disse o mestre rijamente, Alija tudo ao mar; não falte acordo. Vão outros dar à bomba, não cessando; A bomba, que nos imos alagando!"
73
Correm logo os soldados animosos A dar à bomba; e, tanto que chegaram, Os balanços que os mares temerosos Deram à nau, num bordo os derribaram. Três marinheiros, duros e forçosos, A menear o leme não bastaram; Talhas lhe punham duma e doutra parte, Sem aproveitar dos homens força e arte.
74
Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força do ímpeto cruel, Se para derribar então vieram A fortíssima torre de Babel. Nos altíssimos mares, que cresceram, A pequena grandura dum batel Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustém nas ondas tanto.
75
A nau grande, em que vai Paulo da Gama, Quebrado leva o masto pelo meio. Quase toda alagada: a gente chama Aquele que a salvar o mundo veio. Não menos gritos vãos ao ar derrama Toda a nau de Coelho, com receio, Conquanto teve o mestre tanto tento, Que primeiro amainou, que desse o vento.
76
Agora sobre as nuvens os subiam As ondas de Netuno furibundo; Agora a ver parece que desciam As íntimas entranhas do Profundo. Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriam Arruinar a máquina do mundo: A noite negra e feia se alumia Com os raios, em que o Pólo todo ardia.
77
As Alcióneas aves triste canto Junto da costa brava levantaram, Lembrando-se do seu passado pranto, Que as furiosas águas lhe causaram. Os delfins namorados entretanto Lá nas covas marítimas entraram, Fugindo à tempestade e ventos duros, Que nem no fundo os deixa estar segui-os.
78
Nunca tão vivos raios fabricou Contra a fera soberba dos Gigantes O grã ferreiro sórdido, que obrou Do enteado as armas radiantes; Nem tanto o grã Tonante arremessou Relâmpagos ao mundo fulminantes, No grã dilúvio, donde sós viveram Os dois que em gente as pedras converteram.
79
Quantos montes, então, que derribaram As ondas que batiam denodadas! Quantas árvores velhas arrancaram Do vento bravo as fúrias indinadas! As forçosas raízes não cuidaram Que nunca para o céu fossem viradas, Nem as fundas areias que pudessem Tanto os mares que em cima as revolvessem.
80
Vendo Vasco da Gama que tão perto Do fim de seu desejo se perdia; Vendo ora o mar até o inferno aberto, Ora com nova fúria ao céu subia, Confuso de temor, da vida incerto, Onde nenhum remédio lhe valia, Chama aquele remédio santo é forte, Que o impossível pode, desta sorte:
81
"Divina Guarda, angélica, celeste, Que os céus, o mar e terra senhoreias; Tu, que a todo Israel refúgio deste Por metade das águas Eritreias; Tu, que livraste Paulo e o defendeste Das Sirtes arenosas e ondas feias, E guardaste com os filhos o segundo Povoador do alagado e vácuo mundo;
82
"Se tenho novos modos perigosos Doutra Cila e Caríbdis já passados, Outras Sirtes e baixos arenosos, Outros Acroceráunios infamados, No fim de tantos casos trabalhosos, Por que somos de ti desamparados, Se este nosso trabalho não te ofende, Mas antes teu serviço só pretende?
83
"Ó ditosos aqueles que puderam Entre as agudas lanças Africanas Morrer, enquanto fortes sostiveram A santa Fé nas terras Mauritanas! De quem feitos ilustres se souberam, De quem ficam memórias soberanas, De quem se ganha a vida com perdê-la, Doce fazendo a morte as honras dela!"
84
Assim dizendo, os ventos que lutavam Como touros indómitos bramando, Mais e mais a tormenta acrescentavam Pela miúda enxárcia assoviando. Relâmpados medonhos não cessavam, Feros trovões, que vêm representando Cair o céu dos eixos sobre a terra, Consigo os elementos terem guerra.
85
Mas já a amorosa estrela cintilava Diante do Sol claro, no Horizonte, Mensageira do dia, e visitava A terra e o largo mar, com leda fronte. A densa que nos céus a governava, De quem foge o ensífero Orionte, Tanto que o mar e a cara armada vira, Tocada junto foi de medo e de ira.
86
"Estas obras de Baco são, por certo, Disse; mas não será que avante leve Tão danada tenção, que descoberto Me será sempre o mil a que se atreve." Isto dizendo, desce ao mar aberto, No caminho gastando espaço breve, Enquanto manda as Ninfas amorosas Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.
87
Grinaldas manda pôr de várias cores Sobre cabelo; louros à porfia. Quem não dirá que nascem roxas flores Sobre ouro natural, que Amor enfia? Abrandar determina, por amores, Dos ventos a nojosa companhia, Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas, Que mais formosas vinham que as estrelas.
88
Assim foi; porque, tanto que chegaram A vista delas, logo lhe falecem As forças com que dantes pelejaram, E já como rendidos lhe obedecem. Os pés e mãos parece que lhe ataram Os cabelos que os raios escurecem. A Bóreas, que do peito mais queria, Assim disse a belíssima Oritia:
89
"Não creias, fero Bóreas, que te creio Que me tiveste nunca amor constante, Que brandura é de amor mais certo arreio, E não convém furor a firme amante. Se já não pões a tanta insânia freio, Não esperes de mi, daqui em diante, Que possa mais amar-te, mas temer-te; Que amor contigo em medo se converte."
90
Assim mesmo a formosa Galateia Dizia ao fero Noto, que bem sabe Que dias há que em vê-la se recreia, E bem crê que com ele tudo acabe. Não sabe o bravo tanto bem se o creia, Que o coração no peito lhe não cabe, De contente de ver que a dama o manda, Pouco cuida que faz, se logo abranda.
91
Desta maneira as outras amansavam Subitamente os outros amadores; E logo à linda Vénus se entregavam, Amansadas as iras e os furores. Ela lhe prometeu, vendo que amavam, Sempiterno favor em seus amores, Nas belas mãos tomando-lhe homenagem De lhe serem leais esta viagem.
Não acabava, quando uma figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura, O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má, e a cor terrena e pálida, Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos.
Com base na estrofe anterior, ilustra grafica e artisticamente a figura de Adamastor.
Disse-te adeus e morri E o cais vazio de ti Aceitou novas marés. Gritos de búzios perdidos, Roubaram dos meus sentidos, A gaivota que tu és.
Gaivota d'asas paradas, Que não sente as madrugadas E acorda à noite a chorar. Gaivota que faz o ninho Porque perdeu o caminho Onde aprendeu a sonhar.
Preso no ventre do mar O meu triste respirar Sofre a invenção das horas. Pois, na ausência que deixaste, Meu amor, como ficaste? Meu amor, como demoras!